viagem / vertigem

sonhei que ia a Bali e escrevia, então levantei e fui a Bali, com caderno e lápis, uma mala leve, um chapéu furado e pouco, muito pouco dinheiro. viajei de carro, de moto, de caminhão, de barco, de trem, de carona. andei a pé, por mil dias. e quando a noite caía, me sentia Sherazade: me deram mil e uma noites e eu contei mil e uma estórias. falei de amor e morte, do calor escaldante do meio-dia. e o sol da meia-noite era um ímpeto que me impulsionava a falar e falar e escrever e escrever e cair mais fundo naquela brecha que, ainda que sombria, era incrivelmente ensolarada. eu suava e contava um conto, em delírio, e a madrugava virava dia e o dia virava outro, e a areia colava no suor do corpo, com o vento do norte soprando sussurros. em meio à sinfonia de vozes veladas, em meio a sonhos eróticos e molhados e segredos pueris, eu adormecia.

adormeci numa volta ao mundo. dormi, em febre, por duzentos dias. desci do ônibus com um torcicolo dolorido, os olhos secos do vento quente. sentia que meu corpo estava dobrado e amassado, mas meu espírito cantava. senti-me Marco Polo em 1922, desbravando a terra nova, a água de Jimbaran a molhar-me os pés. as mãos coçavam pra escrever, a cabeça a mil. até que então aparece, por entre a poeira, a mais bela criatura, mais inocente e mais suja, que de tão bela era o fruto mais proibido e libidinoso que minha imaginação podia imaginar devorando: a pele beijada de sol, com a ponta do nariz coberta de sardas, o cabelo da cor de fogo brilhando contra o sol, um cabelo emaranhado de viagem e sono e sonho, um cabelo mexido como se, por anos, só tivesse sido penteado por dedos ou por ventos de lindas férias ensolaradas de verão, férias compostas eternamente apenas por domingos de lazer. e a barba, loira de tão tostada de mar e sal e sol parecia rústica ao olhar mas era, de certa forma, macia a sua própria maneira ao toque.

não lhe perguntei seu nome, mas toquei sua mão. entrelacei meus dedos com os dele e o arrastei para a beira mar. andamos, conversando pouco. sua voz era um que de rouco, outro de encanto. “se importa de ir a um outro lugar?” perguntei-lhe, e ele me respondeu sem palavras, só com um sorriso de soslaio. fomos tomar uma dessas cervejas Bintangs, com suas adoráveis garrafinhas, mais pra beira do asfalto. o vento vibrava na copa das árvores, soando alto. agora trovejava, e ele sacou a câmera da bolsa e tirou meu retrato. “a melhor lembrança de Bali”, disse ele. ainda assim não perguntei-lhe o nome, com medo do encanto acabar-se. disse que era fotógrafo e que dormira e sonhara que fotografava em Bali, então veio a Bali para fotografar. estávamos ali apenas a cinco minutos, mas não importava: já era o mais longo e mais belo tempo da minha vida; nosso encontro era destino, era inevitável, e todo tempo que passou até esse momento fora apenas o tempo fazendo hora, fora o tempo aguardando o tempo certo para a eternidade.

e a seda dos lençóis era refrescante no contraste com o calor e macia no contraste da barba. seu queixo era quadrado, forrado de loiro, os lábios uma linha fina e vermelha contra o meu pescoço, marcas molhadas. seus lábios eram salgados do meu próprio gosto, e o cheiro do seu corpo era jasmim, mar e incenso. a essa altura eu o amava tanto que não podia me lembrar de um tempo onde eu não o havia amado. não existia passado, senão o passado imediato do último momento onde senti seu gosto, seu corpo em mim. rolamos nesse lençóis macios por cem dias seguidos, sem comer nem beber nem respirar. nos levantamos, em concordância perfeita, quando o sol disse adieu no centésimo primeiro dia e cedeu lugar a lua e as estrelas do céu límpido, estrelas brilhantes que sorriam, um pouco invejosas, do tempo terreno. eu ainda não havia perguntado seu nome, mas começava a tomar coragem para perguntar.

discutíamos, no velho carro alugado, sobre qual importância é maior: se a da jornada ou a do destino. romântica incomparável, pensei comigo mesma: “desde que um de nós esteja no banco do carona, viajo para sempre quanto necessário”. e viajamos. sob o sol e sob a lua. no olho do furacão. escrevi sobre ele, escrevi furiosamente, no banco ao seu lado. escrevi ao volante, sem olhar a estrada. adormeci com a cabeça na janela, o observei, adorando-o, enquanto ele cochilava. ele me fotografou. dançamos sem música, dormimos sem chão, voamos alto. eu usei lápis e canetas até o último, no fervor da escrita, no espírito dos antigos deuses, na inspiração da capital. bebemos. ele me fotografou mais, rolo atrás de rolo atrás de rolo. viajamos nesse velho carro, uma mola cutucando-me as costas, por quinhentos dias sem dinheiro, e vivemos e comemos e bebemos e rimos como marajás. os beijos dele eram como manjá dos deuses e eu me alimentei deles, e sua risada era como água pura e eu bebi dela e, egoísta que eu era, queria fazê-lo me beijar e rir mais e mais, pois tinha fome e tinha sede insaciáveis e, naquele beijo e naquela risada, eu retirava um pouco do estilhaço do mundo que me penetrava a pele, tirava um pouco o veneno da escrita e o fel inevitável do poeta que vive de escrever.

e ele era problema, um lindo e magestoso problema, um problema que deveria ter 1.80m de pernas – e que lindas pernas – pois ele era ativo e artístico e era o caos do tráfego da cidade grande na minha estreita e apertada rua de paralelepípedos, ele coloria o meu mundo preto-e-branco de jornalista e coloria sem respeitar linhas e sem respeitar espaços e sem ter mistérios, ele me retirava as camadas de segredos como retirava a minha roupa, me despia emocionalmente pouco a pouco naquele momento acridoce que é a pequena morte do mundo, quando se fecha os olhos e se perde o ar, o momento volátil da abertura, o momento em que se passa pelo último batente do paraíso e se volta, reles mortal, para começar de novo. ele me tirava o peso do mundo e me colocava o peso do corpo, ele se emaranhava nas minhas pernas e sse fundia até o ponto onde não se sabia onde ele começava e onde eu terminava.

e ele foi embora como veio. desembaraçou nossos dedos na contra-luz e entrou no ônibus para um outro lugar que não reparei onde, os cabelos beijados de sol e banhados de suor, cabelos que foram penteados, por três mil dias apenas pelos meus dedos afetuosos e pelo vento de um delírio formado apenas de amor, sexo e feriados enluarados compostos apenas de sarau e banhos de mar. a barba aparada mas ainda assim muito loira, loira de Bali e loira de areia, loira como os cabelos de uma sereia, assim como sua voz, um canto doce e melodioso que me chamou pro fundo do mar… e eu fui, de braços abertos, com navio, tripulação e âncora, eu fui, me afoguei naquela barba de sereia, me arranhei naquele bigode de areia, me despi e te mordi e me esfreguei contra o seu corpo, morri no calor do seu abraço e me deitei, o cabelo esparramado como um polvo de mil tentáculos pelo travesseiro daquela cama quente daquele hotel quente e senti, ao mesmo tempo, o arrepio do calafrio gelado passando pela pele, da língua quente no ouvido frio, na linha da espinha, da meia rima na ponta do lápis, no gemido sufocado na madrugada, dança dos amantes, no grito do gozo final, na última tremida, batendo os dentes, como uma santa e uma meretriz. e ele se foi, no último ônibus pro último mundo, a última das mil e uma noites.

e guardei um retrato seu, tirado enquanto você dormia. o verso diz: “Bali, 08/99”. e guardei textos, muitos textos, cadernos e cadernos, folhas soltas, rascunhos, palavras tatuadas e acanetadas em braços e pernas e barrigas. e naquela noite da volta sonhei que escrevia em casa e levantei e fui pra casa, de charrete, no lombo do camelo. fui a pé. naquela noite, no banho de mar, entrei n’água e sonhei um livro inteiro, no delírio da cólera, na febre da dengue: sonhei que morria de amor, e não terminei a estória. prometi que, àquele príncipe, terminaria minha estória apenas na noite dia seguinte. despertei.

estava em casa.

One Response to “viagem / vertigem”

  1. Licia Says:

    Esse post já tem mais de 1 semana, CADÊ A PRODUÇÃO TEXTUAL??????

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